A Divindade de Jesus e a História



Já vimos que não aparece no Novo Testamento nenhuma proclamação taxativa da divindade de Jesus, no sentido que lhe deu o Concílio de Nicéa, de “consubstacial com o Pai de toda a eternidade” certo que a idéia aparece difusa no Evangelho de João, mas este só apareceu 60 anos depois da morte do Mestre, quando a Cristologia (interpretação teológico da figura do Cristo) já se achava impregnada do neoplatonismo com a sua noção do “Logos”.
Agora vejamos em linhas gerais como se chegou a concretizar a idéia da divindade, que era totalmente desconhecida nos primitivos tempos do Cristianismo. Toda gente sabe que na decisão de Nicéia (325 dc.) predominou a vontade do imperador Constantino, que, egresso do paganismo estava ainda bem longe de poder ser considerado Cristão, tanto que continuou como pontífice da antiga religião e só veio a receber o batismo quando se achava à morte, no ano 337.
Mas não cometeremos a injustiça de atribuir aquela decisão unicamente ao arbítrio do Imperador, pois a História registra que as controvérsias reinavam ferozes desde o início do segundo século, e ameaçavam dividir a Igreja, de sorte que a influência autoritária de Constantino pode ter tido o propósito de evitar a cisão do Cristianismo, o que, todavia, conforme veremos, não foi conseguido no Concílio de Nicéa e nem nos subseqüentes.
Vejamos os esclarecimentos que nos podem trazer protestantes sobre a controvertida questão da divindade de Cristo:
“Os chamados Pais da Igreja entendiam Jesus como o revelador divino do conhecimento do verdadeiro Deus e arauto de uma “nova lei” de moralidade simples, elevada e severa” (WILLISTON WALKER, em “História da Igreja Cristã”, 2ª ed., pg. 62).
“Inácio (bispo de Antioquia de 110 a 117), professava o mesmo tipo elevado de cristologia evidenciada nos documentos joaninos. O sacrifício de Cristo é o “sangue de Deus”. Saúda os cristãos romanos em “Jesus Cristo, nosso Deus” e no entanto não chega a identificar exatamente Cristo com o Pai. Cristo, escreve ele, realmente é da estirpe de Davi segundo a carne, Filho de Deus por vontade e poder de Deus.” (Idem, pg. 61).
“Juliano (Contra Christianos, apud Cirilo de Alexandria, op. IX, 326ss): “Mas, infortunadamente não sois fiéis às vocações apostólicas; estas, em mãos de seus sucessores, tornaram-se em máxima blasfêmia. Nem Paulo, nem Mateus, nem Lucas ou Marcos ousaram afirmar que Jesus é Deus. Foi o venerável João quem, constatando que um grande número de habitantes das cidades gregas e italianas eram vítimas de epidemias e ouvindo, imagino, que as tumbas de Pedro e Paulo se tornavam objeto de culto, João, repito, foi o primeiro a ousar tal afirmativa.” (H. BETTENSON em “Documentos da Igreja Cristã”, pg. 50).
“Tertuliano (150/225) distinguia entre os elementos divino e humano em Cristo. Derivados do Pai por emanação, o Filho e o Espírito são subordinados a Ele. A doutrina da subordinação, já presente nos Apologistas, viria a ser característica da cristologia do “Logos” até o tempo de Agostinho.” (W. WALKER, em “História da Igreja Cristã”, pg 99).
“Para Paulo de Samósata, bispo de Antióquia entre 260 e 272, Jesus era um homem considerado único por causa do seu nascimento virginal, além de cheio do poder de Deus, isto é, o “Logos” de Deus. Mediante essa inspiração Jesus era unido a Deus por amor, em vontade, mas não em substância.” (WALKER, ibd. pg. 102).
“Para Ário (presbítero de Alexandria) Jesus não era da mesma substância do Pai, tendo sido tirado do “nada”, como as demais criaturas. Não era, por conseguínte, eterno, embora o primeiro entre as criaturas e agente na criação deste mundo. Cristo era na verdade Deus em outro sentido, mas um Deus inferior, de modo algum uno com o Pai em essência e eternidade. Seu Opositor foi o bispo Alexandre, para quem o Filho “era eterno, da mesma substância do Pai, e absolutamente increado” Ele convocou um Sínodo em Alexandria (cerca de 321), Sínodo esse que lançou condenação sobre Ario e Seus seguidor” (WALKER ibd., pgs. 155/156).
“A disputa dividiu a Igreja e causou perturbação à ordem pública. Então o Imperador convocou o Concílio de Nicéia, ao qual compareceram cerca de 300 bispos, só 6 do Ocidente. Depois de acirradas discussões o Imperador, desejando que se chegasse a uma expressão unificada da fé, forçou a definição de Nícéia. Sob sua supervisão, todos os bispos a subscreveram com exceção de dois que, juntamente com Ario, foram banidos pelo imperador.” (WALKER ibd., pg. 158) (grifos nossos). “Na realidade as decisões de Nicéa foram fruto de uma minoria. Foram mal entendidas e até rejeitadas por muitos que não eram partidários de Ario. Posteriormente 90 bispos elaboraram Outro credo (o “Credo da Dedicação”) em 341, para substituir o de Nicéia. (...) E em 357, um Concílio em Smirna adotou um credo autenticamente ariano.” (H. BTTENSON em “Documentos da Igreja Cristã”, pg. 74 e 76).
“Passando em revista essa longa controvérsia, é de afirmar-se ter sido uma infelicidade o fato de uma frase menos controvertida não ter sido adotada em Nicéia, e infelicidade ainda maior a circunstância de a interferência imperial se constituir fator tão importante no correr das ulteriores discussões. Em meio a essa luta surgiu a igreja imperial e se desenvolveu plenamente a política de interferência imperial. A rejeição da ortodoxia oficial erigira-se em crime.” (WALKER, ibd., pg. 171).
“Logo que Constantino se constituiu patrono do Cristianismo, este se tornou uma religião eivada de heresias e de inovações.” (...) A maioria dos que entravam para a Igreja, era realmente pagã, gente de vida reprovável. Era assim natural que aparecesse uma queda do nível moral do caráter cristão.” (ROBERT HASTINGS NICHOLS, em “História da Igreja Cristã”, ed. Casa Editora Presbiteriana, 1978, pgs. 44 e 46).
“A quéstão da divindade de Cristo tendo sido vitoriosa, a discussão voltou-se para a relação entre a sua natureza divina e a humana Foram tremendas as divergências de opinião, que chegaram a provocar divisões na Igreja.” (NICHOLS, ibd., pg. 48), (Grifo nosso).
“As grandes verdades que são vitais à fé cristã, como as da encarnação e da Trindade, foram examinadas e expressas pela Igreja nessa “Era dos Concílios”. Tais decisões têm sido desde então aceitas pela cristandade. Ao lado dessa vitória, surgiu um prejuízo em virtude da tendência de se pensar que a coisa mais importante era defender e guardar as definições corretas da verdade cristã. A prova da fé cristã de uma pessoa não era tanto a sua lealdade a Cristo, em espírito e pelo comportamento moral, senão a sua aquiescência ao que a Igreja declarava a doutrina correta, isto é, a sua ortodoxia. Aquele que não fosse considerado ortodoxo, era expulso como herege, embora a sua vida fosse um testemunho contínuo de lealdade ao Cristo.” (NICHOLS, ibd., pgs. 48 e 49).
Em todos os tempos muitos cristãos se insurgiram contra a idéia da divindade que, como vimos, não encontra apoio nem na Escritura, nem na razão. Mas o “sistema” ortodoxo que detinha o poder sempre tratou de sufocar todas as tentativas de contestação. Submetemos atenção dos leitores mais alguns excertos da obra “História da Igreja Cristã”, do teólogo WALKER, que o comprovam:
“Com as tendências racionalizadoras do século XVIII, as idéias antitrinitárias, que viam na moralidade a essência da religião, foram grandemente fortalecidas. Tais idéias eram representadas no continente europeu por anabatistas e socinianos. Em 1575 foram queimados “batistas arianos” nos Países Baixos e em 1612 foram queimados os últimos ingleses por motivo de fé. Em 1717 alguns pastores presbiterianos tomaram posição entre a ortodoxia e o arianismo.” (Pg. 594).
“Em 1774 o clérigo Lindsay se retirou da Igreja Anglicana e fundou em Londres uma Igreja Unitária. Em 1813 o Parlamento Britânico extinguiu as penas contra os negadores da Trindade. Este antigo unitarismo inglês era claro em sua negativa dos “credos feitos pelos homens” e na insistência da salvação pelo caráter.” (Pg. 595).
“No século XIX surgiu o liberalismo eclesiástico, COLERIDGE (1772/1834) foi o precursor e J. F. D. MAURICE (1805/1872) o impulsionador do pensamento liberal. Para ele, “Cristo é o cabeça de toda a humanidade, ninguém está sob a maldição de Deus e ninguém se perderá para sempre.” O número dos liberais não era grande, mas sua influência sobre o pensamento religioso inglês foi enorme.” (Pg. 661).
“Ao dealbar do século XX os liberais haviam conquistado um lugar em muitas denominações. Nas primeiras décadas os conservadores tudo fizeram para expulsá-los, através de amarga controvérsia fundamentalista-modernista.” (Pg. 687).
A luta ainda continua no seio das igrejas cristãs. Em 1977 sete teólogos ingleses (seis, anglicanos e um da Igreja Reformada Unida) publicaram um livro (“O Mito do Deus Encarnado”) em que consideram a crença na divindade “um meio poético ou mitológico de expressar a significação de Cristo para nós, não a verdade literal.” (“TIME” de 15-8-77). O livro tem despertado fortes polêmicas, e é bom que assim seja, a fim de que as consciências acomodadas despertem do seu torpor.

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