As Penas Eternas



Pretendemos agora mostrar aos nossos irmãos protestantes porque não podemos aceitar a idéia das penas eternas, tal como é ensinada pelos ramos ortodoxos do Cristianismo. Pedimos que nos sigam em nosso arrazoado com muita compreensão e sensibilidade, uma vez que vamos ingressar numa área que não deve ser desbravada apenas com a razão, mas sobretudo com o coração, Reflete-se com a mente, mas sente-se por um complexo de impulsos íntimos da alma a que vulgarmente se chama coração. Então temos de manter abertas as portas da percepção, mas também, e principalmente, as da intuição.
Diz a Psicologia que a percepção é a projeção na consciência de um fato externo focalizado pela atenção; e que a intuição é uma forma de percepção que não passa pelo raciocínio. Como esta última definição nada define, tentaremos aproximar-nos do sentido real dizendo que a intuição é a captação de um fenômeno pelo inconsciente sem prévio trânsito pelas vias da reflexão. Na verdade, quantos e quão valiosos conhecimentos nos chegam pelas veredas intuitivas se nos pomos em sintonia com suas fontes eternas!...
Assim, pedimos aos queridos irmãos que nos acompanhem nesta jornada meditando sobre certas verdades constantes da Bíblia e que não foram escritas apenas como meros conceitos filosóficos, mas como ensinamentos reais, destinados a mudar o comportamento dos homens quando estes atingirem o estágio intelectual e moral necessário para compreendê-los e assimilá-los.
Deus é amor (1º João 4:16) e esse amor se reflete na atração universal que interliga todas as coisas, desde os elétrons em seu giro no interior do átomo, até as galáxias com seus imensos campos gravitacionais através do espaço infinito. E esta concepção não parece envolver nenhum laivo de “panteísmo” pois a lógica e a razão nos dizem que o pensamentoCriador atua sem cessar em todos os quadrantes do Universo e, afinal, como disse o apóstolo Paulo: “Nele vivemos e nos movemos e existimos” (Atos 17:28). Com esse mesmo pensamento assim se exprimiu o grande poeta Guerra Junqueiro no seu inspirado poema “O Melro”:

“Tudo o que existe é imaculado e é santo,
há em toda miséria o mesmo pranto
e em todo coração um grito igual.
Deus semeou d’almas o universo todo,
tudo o que vive e ri e canta e chora,
tudo foi feito com o mesmo lodo,
purificado com a mesma aurora.
Oh! mistério sagrado da existência,
só hoje eu te adivinho,
ao ver que a alma tem a mesma essência,
pela dor, pelo amor, pela inocência,
quer guarde um berço, quer proteja um ninho.
Só hoje eu sei que em toda criatura,
desde a mais bela até a mais impura,
ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura.
Ah! Deus é bem maior do que eu julgava!...

Que lemos na Bíblia? “Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da Verdade”. (1º Tim. 2:3/4). Ora, o que Deus quer, fatalmente se realiza, porque a Sua Vontade é suprema, não está sujeita às contingências próprias da vontade humana. Eu posso “querer”, mas de quantas coisas depende a realização da minha vontade! Assim, o meu “querer” não passa de um “desejo” nem sempre realizável, porque sujeito às limitações inerentes à minha imperfeição. Mas a vontade de Deus é causa geradora porquanto Ele é infinito em todos os seus atributos, do contrário não seria perfeito. Portanto, é inadmissível a mais leve restrição à sua soberana vontade, daí o afirmarmos que tudo o que Ele quer necessariamente acontece.
Se Deus é amor, os Espíritos saídos de suas mãos onipotentes são fruto desse trabalho de amor, sendo criados ignorantes e naturalmente imperfeitos, a fim de que, através das experiências da vida, possam elevar-se gradualmente em conhecimento e virtude, para retornarem afinal ao seio do Criador e participarem da Sua glória, no concerto dos Espíritos Puros. Quer Ele transmita o sopro da vida a cada novo ser no instante da concepção (ou no período entre a concepção e o nascimento), como pensam os irmãos evangélicos, quer essa criação tenha sido bem mais remota, como entendemos nós, no que todos concordamos é que saímos das mãos do nosso Pai Celestial envoltos na auréola do Seu amor infinito, pois se “Deus é amor”, tudo o que sai das Suas mãos é produto desse amor, que extravasa em catadupas de luz através da eternidade dos tempos e da imensidão dos espaços.
Se esse é o quadro que nos pintam a imaginação e a esperança - e não podemos concebê-lo de outra forma - é lícito concluir que esse Ente de afeição e de bondade só pode criar as almas para fazê-las felizes e para que um dia participem da Sua glória, de modo algum para torná-las desgraçadas, ou para as condenar a sofrimentos eternos. Portanto, não nos parece lógico supor que esse Pai amoroso, sendo onisciente, e pois conhecendo de antemão o destino das almas por Ele criadas, sabendo que, segundo a ortodoxia cristã, a esmagadora maioria delas será fatalmente condenada à perdição eterna, mesmo assim continue gerando criaturas tão frágeis, tão suscetíveis de sucumbir às tentações, quando lhe seria mais fácil, uma vez que é onipotente, fazê-las mais perfeitas, ou pelo menos mais resistentes ao mal.
Daí o não aceitarmos, nós espíritas, a doutrina das “penas eternas”, visto nos parecer incompatível com a suprema bondade e a suprema justiça, qualidades excelsas e essenciais do nosso Criador e Pai.
Alega-se em defesa da eternidade das penas que a gravidade da falta é diretamente proporcional à importância da pessoa ofendida, e que assim uma ofensa dirigida a um ser infinito como Deus seria também infinita, implicando uma punição igualmente infinita. Mas esse argumento é especioso, porque sendo o homem um ser finito, de modo algum poderia cometer urna ofensa infinita, de sorte que a ofensa não guarda relação com a pessoa do ofendido, mas com a capacidade do ofensor. Nas próprias normas do nosso Direito Penal (arts. 22 a 24), observa-se a “inimputabilida” do delinqüente por circunstâncias de idade, perturbação de sentidos ou alienação mental. Perguntamos: Pode alguém de bom senso e no pleno domínio das suas faculdades sentir-se ofendido pelas diatribes que lhe dirija um ébrio ou um alienado mental? Pode um adulto consciente sentir-se atingido pelas injúrias que lhe dirija uma criança de tenra idade? Não existe aí uma tal desproporção de maturidade intelectual suficiente para elidir qualquer possibilidade de agravo? E não é infinitamente maior a desproporção que existe entre o Ser Supremo e a minha insignificante pessoà, de que a existente entre mim e uma criancinha que mal começa a ensaiar seus próprios passos? Então como posso eu, Espírito imperfeito, assim criado por Ele e que mal engatinha em sua peregrinação pelos caminhos do aperfeiçoamento moral, como posso ofender o Todo Poderoso ao ponto de merecer uma condenação a penas severas e inextinguíveis, por deslizes resultantes da imperfeição inerente à minha própria natureza humana? Não estaria aí a severidade da pena em brutal desproporção com a gravidade da falta?
E o pior é que, enquanto Jesus nos veio ensinar a amar os nossos inimigos, a perdoar indefinidamente as ofensas, a ver no Pai Celestial um ser compassivo e misericordioso, sempre pronto a acolher um filho que se transvia (ver parábola do Filho Pródigo), esse Deus que a ortodoxia cristã nos impinge é de uma severidade extrema, cominando penas que nenhum tribunal humano subscreveria, e ainda por cima irremissíveis, de nada adiantando, após a morte, o arrependimento dos por essa forma condenados...
Ora, nós sabemos que a experiência na carne, por prolongada que seja, não passa de um instante fugaz em face da eternidade. Então temos de forçosamente concluir que a condenação a uma eternidade de sofrimentos por faltas cometidas durante tão breve tempo, não se coaduna com a idéia de um Deus justo, misericordioso e infinitamente bom. E se Deus perdoa ao culpado que se arrepende de seus erros no curso da vida terrena, por que não poderá fazê-lo em relação aos que se arrependem depois da morte? De que serviria, então a “pregação do Evangelho aos mortos”, a que alude o apóstolo Pedro em sua epístola? (1. Pedro 4:6). Pergunta-se: Depois da morte o ser conserva a sua individualidade ou não? Pode pensar, sentir, raciocinar? Pode arrepender-se de seus erros? Se se arrepende, por que não pode ser perdoado? Que Deus misericordioso é esse, que só perdoa as faltas de seus filhos durante a vida terrena, que é um átimo, e não perdoa durante a vida espiritual, que dura a eternidade? Se Deus criou os homens para a Sua glória (Isaías 43:7), por que condenará a penas eternas aqueles que o invocarem? (Joel 2:32). Onde estão os fundamentos da idéia de que Deus só atende aos pecadores durante a vida corpórea? Como entender “a minha ira não durará eternamente” (Jer. 3:12), se as almas são condenadas pela eternidade? Como pode alguém “amar a Deus sobre todas as coisas” (Deut. 6:5), se entender que esse Deus é um tirano, que condena o pecador a penas eternas e não lhe perdoará após a morte, por mais que se arrependa? Um tal Deus não poderia ser amado, mas apenas temido (Salmo 89:7).
O próprio Jesus foi pregar aos Espíritos em prisão (1º Pedro 3:19). Por que foi Ele pregar, se os mortos não se arrependem? Observe-se que não se trata da expressão “mortos em delitos e pecados”, pois logo o versículo seguinte esclarece: “Os quais noutro tempo foram desobedientes, quando a longanimidade de Deus esperava, nos dias de Noé”. Portanto, Espíritos que haviam vivido na Terra ao tempo de Noé e a quem Deus concedeu nova oportunidade, através da pregação de Jesus. E se o destino dos mortos é irremissível, por que se batizavam por eles os primitivos cristãos? (1º Cor. 15:29). Vejamos de que forma falou sobre o assunto o teólogo anglicano W. WALKER:
“Orações em favor dos mortos, em geral, e memoriais na forma de ofertas efetuadas nos aniversários do seu passamento, eram comuns já no começo do século II.” (“História da Igreja Cristã”, pg. 125).
“Quanto ao batismo, instituição anterior ao Cristianismo, embora Paulo não o considerasse absolutamente necessário à salvação (1. Cor. 1:14-17), seu conceito aproximava-se da noção de iniciação esposada pelas religiões de mistério. Seus conversos em Conoto, pelo menos, tinham uma concepção quase mágica do rito, deixando-se batizar em lugar de seus amigos já falecidos, a fim de que os benefícios do rito alcançassem a estes.” (1. Cor. 15:29) (lbd., pg. 127).
Se Deus é onipotente e onipresente não pode deixar de ver o que se passa em todos os recantos do infinito Universo e, portanto, também o sofrimento dos condenados no inferno. E se fica assistindo ao sofrimento dos infelizes por Ele mesmo criados, a clamarem por perdão num arrependimento inútil, e não se comove ante esse espetáculo dantesco, esse Deus é de uma insensibilidade espantosa que nenhum ser humano, por empedernido que fosse, seria capaz de manter.
Digam-nos, em sã consciência, é concebível que o Deus cujo ensinamento ministrado aos homens, através de Jesus, foi o de amar até mesmo aos inimigos e perdoar indefinidamente as ofensas, é concebível que esse Deus mande os homens fazerem isso, e não seja Ele mesmo capaz de perdoar, nem capaz de acolher o clamor de pecadores arrependidos? Uro Deus que assim exerce contra criaturas por Ele mesmo geradas uma vingança infinita, é um ser infinitamente vingativo, e, portanto, não bondoso nem misericordioso, e Conseqüentemente não é Deus. Pelo menos não aquele “Deus de Amor” revelado aos homens por Jesus.
Só há uma conclusão a tirar, e é que os homens continuam idealizando Deus à sua própria imagem e semelhança, atribuindo-lhe as suas próprias qualidades e todos os seus defeitos. Entendemos que é impiedade pensar em Deus nestes termos, principalmente em face dos ensinamentos tão claros ministrados pelo Cristo.
Mas ainda não é tudo: Qual será a situação das almas dos justos conduzidas à bem-aventuras eterna? Perdem completamente a lembrança daqueles com quem conviveram em sua existência terrena, ou conservam viva a memória dos que foram aqui seus pais, seus filhos, seus irmãos, seus amigos? Se esquecem tudo, de que serviram os laços de família, as relações de amizade, os vínculos de amor que aqui constituíram? Ficará tudo isso perdido para sempre? Mas se conservam a Lembrança, a situação ficará infinitamente pior: Como podem eles gozar de felicidade perfeita sabendo que entes queridos estão a padece tormentos infindáveis? Como pode uma mãe gozar a felicidade dos justos, tendo consciência de que um filho muito amado jamais poderá compartilhar da sua ventura no céu, porque foi condenado a sofrer eternamente no inferno?
Eis porque nós, espíritas, não podemos aceitar a doutrina das penas eternas, porque ela não se coaduna com a idéia de um Deus justo e misericordioso. Aí estão dois atributos aparentemente conflitantes. Como pode Deus ser justo e ao mesmo tempo misericordioso? E que sendo justo Ele não deixa sem punição nenhuma ofensa, como não deixa sem recompensa nenhum ato meritório. E sendo misericordioso, não deixa que seus filhos sofram pela eternidade. Acreditamos que Ele é inflexível para com o pecador endurecido, mas sempre pronto a acolher os que a qualquer tempo se arrependam e implorem o perdão de suas faltas. A Justiça Divina se faz sentir dando ao penitente novas oportunidades de reparar os erros praticados, de refazer suas experiências, de ressarcir as ofensas e prejuízos que tenha causado ao seu próximo. Para as almas saídas das mãos do Criador há sempre uma esperança, não mais a terrível inscrição imaginada por Dante no pórtico do inferno: “Lasciate ogni spranza voi ch’entrate!”, porque Deus é Pai e Ele quer que todos os homens se salvem e o que Ele, quer, já o dissemos, infalivelmente acontece.
Mas há ainda outro ponto a considerar: Se nos parece absurda a condenação a penas eternas por faltas cometidas como resultado das imperfeições inerentes à alma humana, ou, não raro, por influência do próprio meio em que cada um viveu sua experiência terrena, o que poderíamos dizer da tese abraçada por nossos irmãos evangélicos, que condicionam a perdição eterna, não a tais ou quais ofensas perpetradas durante a vida, mas ao simples fato de não aceitarem a mediação de Jesus nos termos em que é pregada pela ortodoxia cristã?
Não é preciso que nos venham citar os inúmeros versículos em que o Mestre e seus apóstolos afirmaram que todo aquele que nele cresse teria a vida eterna. Gostaríamos apenas de perguntar: Em que consiste exatamente “crer em Jesus”? Para nós, é acolher no coração os seus ensinamentos e passar a viver de acordo com os seus preceitos. E o que foi, realmente, que Ele ensinou? Quais os preceitos que ministrou? Ensinou a amar até mesmo aos inimigos, a perdoar e esquecer as ofensas, a extirpar do coração o egoísmo e o orgulho, a fazer aos outros o que queremos que eles nos façam, a sempre retribuir o mal com o bem, a socorrer os irmãos em suas necessidades sem visar a qualquer recompensa, enfim, a compreender, servir e perdoar, perdoar indefinidamente.
Até mesmo na parábola das ovelhas e dos bodes, a que se refêre o evangelista Mateus (25:31-45), Jesus colocou como condição única da salvação a prática do amor nas relações com o próximo. Quem observar esse preceito terá o reino de Deus no coração, e quando cada ser humano se compenetrar desta verdade e promover sua reforma íntima, a Humanidade inteira estará reformada e o reino do céu se instalará na Terra.
Chegaremos um dia a esse glorioso evento? Chegaremos sim, sem a menor dúvida, porque a semente do Evangelho não foi plantada em vão e se aparentemente demora em germinar, é que dois ou três milênios nada são diante da Eternidade.. . Pergunta-se, então: Serão os seres daqueles tempos futuros mais privilegiados que os da época atual e todos os seus predecessores? De modo agum, pois essa Humanidade será a mesma de hoje e de ontem, “porque somos de ontem e o ignoramos” (Jó 8:9); é a mesma Humanidade que vai aprendendo e se aprimorando em sucessivas e proveitosas experiências, através de lutas e de sofrimentos, caindo e se reerguendo, purgando suas faltas, resgatando seus erros, vai aos poucos assimilando os divinos ensinamentos, crescendo em conhecimento (progresso intelectual) e em virtude (progresso moral) até um dia atingir a perfeição dos Espíritos Puros, irmanando-se ao Cristo e integrando-se ao Pai.
Dizei-nos: Não é muito mais lógica e muito mais blime essa perspectiva do que a doutrina que supõe:
“um pequeno número de “eleitos” entregues à contemplação perpétua, enquanto a maioria das criaturas é condenada a sofrimentos sem fim no inferno? Como é pungente, para os corações amorosos, a barreira que ela coloca entre os vivos e os mortos! As a[mas felizes, dizem, só pensam na sua felicidade e aquelas que são infelizes somente nas suas penas. É de admirar que o egoísmo reine sobre a Terra, quando no-lo mostram no próprio céu? Como, pois, é estreita a idéia que ela nos oferece da grandeza, do poder e da bondade de Deus!” (KARDEC, em “O Céu e o Inferno”, 2ª ed. LAKE, pg. 38).
Acreditamos haver demonstrado que a doutrina das penas eternas não condiz com a idéia que fazemos de Deus, aliás expressamente ensinada por Jesus: a de um Pai de amor e de misericórdia. Contudo, os nossos irmãos evangélicos se apegam demasiadamente à letra da Escritura e gostam de repisar expressões como “fogo eterno”, “geena de fogo”, etc., como prova de eternidade das penas. Basta consultar um dicionário qualquer, para verificar que.a palavra “eterno” comporta várias acepções, significando não somente “aquilo que não tem fim”, como também “algo de duração imprecisa”, ou “aquilo de que não se conhece o termo”. Alguns exegetas chegam a distinguir “eternidade” de “eviternidade”, conceito este peculiar à contingência humana, designativo de “um tempo indefinido” ou “um tempo cujo limite se desconhece”.
Assim foi, por exemplo, a “aliança eterna” estabelecida por Deus para a casa de Davi (2º Sam. 23:5), assim foi com os Levitas escolhidos “para servirem perpetua. mente” ao Senhor (1.8 Crôn. 15:2). É certo que Jesus disse: “Ide, malditos, para o fogo eterno”, mas não disse: “Ide e queimai eternamente”, porque ainda que o fogo queimasse pela eternidade, isso não implicaria que o condenado ali devesse permanecer para todo o sempre. O fato de que sempre haverá prisões não quer dizer que um prisioneiro deva ficar na prisão por toda a eternidade.
E por falar em prisão, consideremos o quanto a Humanidade tem progredido no que respeita à punição dos criminosos: A pena, que desde a mais remota antiguidade até os tempos recentes tinha o caráter de um castigo, hoje tem por objetivo a reintegração do desajustado ao corpo social, tanto qué nas penitenciárias já não se alude aos detentos como “condenados”, e sim como “reeducandos”. Então, perguntamos: Será a justiça terrena, que por essa forma se humaniza, considerando o criminoso como um “desajustado social”, quase sempre um produto da miséria, da falta de instrução, de condições mesológicas adversas, será essa justiça mais pêrfeita, ou mais compreensiva, do que a Justiça Divina? Lembremo-nos das palavras de Jesus: “Se vós, sendo maus sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai Celestial. . .“ (Lucas 11: 13). Enfim, tem cabimento pensar que está sujeito ao fogo do inferno até mesmo aquele que chamar o seu irmão de “tolo”? (Mateus 5:22).
Argumentam ainda os teólogos que, para entender como “duração indefinida” a expressão “suplício eterno”, é preciso atribuir idêntico sentido à expressão “vida eterna”, ambas citadas no mesmo versículo (Mat. 25:46). Ora, perguntamos: Para que cria Deus as almas, para fazê-las felizes ou desgraçadas? Acaso seria justo e bom um Deus que as criasse para submetê-las a sofrimentos eternos? Então é lógico supor que Ele as cria para a eterna felicidade e que os sofrimentos por que devem passar são necessários ao seu aperfeiçoamento e purificação. Aliás, tais sofrimentos não são impostos por Deus, mas resultam das faltas cometidas, pois o ser humano colhe aquilo que semeia e, como sabemos, “a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória”. Então, se os sofrimentos têm por objetivo o resgate das faltas, é claro que devem ser temporários desaparecendo com a reparação do mal praticado. É também claro que para um Espíríto obstinado em seus erros os sofrimentos persistirão enquanto não houver arrependimento e resgate, tendo em tal caso duração indefinida.
Diletos irmãos evangélicos: Os preconceitos enaizados em vossas mentes impedem mediteis sobre assuntos religiosos com isenção e espírito crítico. A qualquer idéia estranha aos cânones consagrados como “matéria de fé”, receais estar sendo tentados por Satanás, essa figura simbólica do mal. E no entanto, para que vos concedeu o Pai a inteligência, se nao foi para raciocinar. Por que receais sair no encalço da verdade, se o proprio Cristo disse: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”? (João 8:32).
Se os que negam a preexistência da alma ousassem refletir... Sim, porque a tendência é deixar a mente acomodada às idéias estabelecidas, é seguir as regras fixadas pelos que pensaram antes, principalmente em matéria de religião. Porque para pensar é necessário ter garra, a reflexão lógica por vezes traz perturbação, pode quebrar antigos tabus e abalar convicções tidas como “verdades” secularmente arraigadas.
Então, se ousassem pensar - mesmo dentro do seu ponto de vista ortodoxo - raciocinariam assim: “Meu Espírito foi criado por Deus no momento da concepção (ou no do nascimento, se o preferirem), criado para uma vida terrena que em certos casos pode até ser amena, mas que em geral representa um fardo pelos esforços que exige, pelas responsabilidades que envolve, pelos dissabores que acarreta durante toda a existência. Ora, eu não pedi para vir ao mundo, não fui consultado a respeito, logo a minha vida resultou de um ato de arbítrio do Criador. Ninguém perguntou se eu estava disposto a enfrentar as vicissitudes da existência. E se no curso desta eu cometer faltas graves e não dispuéerde tempo ou por qualquer circunstância não for indúzido a um arrependimento eficaz, ou, mesmo sem ter cometido tais faltas, se apenas não seguir determinadas regras religiosas, ou se a minha razão não se amoldar a certas normas tidas como verdades ou meios de salvação, ou mesmo se, simplesmente, eu não tiver sido predestinado desde a fundação do mundo para compartilhar a sorte dos eleitos, então estarei irremediavelmente condenado a sofrimentos terríveis, bem maiores que os experimentados aqui na Terra e com a agravante de, ao contrário destes, serem destinados a durar para todo o sempre! Que fiz eu para merecer tão cruel tratamento? Por empedernido delinqüente que fosse, como é possível rotular de justa uma tal punição?”
E no entanto, o quadro delineado na Bíblia não nos pinta Deus como um carrasco das suas criaturas. Desde o Velho Testamento, mas principalmente com Jesus, o nosso Criador e Pai nos é apresentado com feições inteiramente diversas. Abstraídos os rompantes de fúria do Jeová judaico, evidente concepção mosaica destinada a intimidar homens contumazes em rebeldia e desobediência, o que notamos é que Deus os castigava, mas estava sempre pronto a perdoar quando se arrependiam. Vejam-se os profetas, principalmente os maiores. Os judeus tinham noção muito vaga da sobrevivência, se é que tinham alguma, por isso as punições e recompensas eram todas na existência terrena. Jesus trouxe a revelação da vida espiritual e com ela a noção grandiosa de Deus em toda a sua plenitude de amor. Vejamos se as seguintes passagens roboram a esdrúxula idéia da punição eterna:
Salmo       22:27 - “Toda a terra se converterá ao Senhor e todas as n  ações adorará a sua face.”
Isaías        49:15 - “Acaso pode uma mulher se esquecer do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho de suas entranhas? Pois ainda que ela viesse a se esquecer dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti.”
54: 7 - “Por um momento te desamparei, mas tornarei a acolher-te com grande misericórdia.”
55: 7 -      “Deixe o perverso o seu caminho, e volte-se para Deus, que é rico em perdoar.”
66:13 - “Como alguém a quem a sua mãe consola, eu vos consolarei.
Jerem.      29:13 - “Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de coração.
     31: 3 - “Com amor eterno te amei, por isso compadecido de ti te atraí a mim.”
31:34 - “Porque todos me conhecerão, desde o menor até o maior, per doare as maldades de todos e não me lembrarei mais dos seus pecados.”
Ezeq.        33:11 - “Juro pela minha vida, diz o Se nhor que não quero a morte do ímpio, mas que ele se converta e viva”
Miquéas   7:18 - “O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem pra ze na misericórdia.”
Joel          2:32 - “Porque todo aquele que invo ca o nome do Senhor, será salvo.
Mateus     6:14 - “Se perdoardes aos homens as e 15 suas ofensas, também o vosso Pai Celestial perdoará vossas ofensas.”
     7:11 - “Pois se vós sendo maus sa bei dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai Celestial dará boas coisas aos que as pedirem.”
     10:29 e 31 -     “Nenhum passarinho cairá em terra, sem a vontade do vosso Pai (...); não temais, pois, mais valeis vós do que muitos passarinhos.”
     18:14 -            “Não é da vontade do vosso Pai que nenhum destes pequeninos se perca.”
Lucas       6:35 - “Amai vossos inimigos (...) e sereis filhos do Altíssimo, o qual é benigno até para os in grato e maus.”
     15: 7 e 10- “Digo-vos que haverá mais alegria. no céu por um pecador que se arrepende, do que por 99 justos que não necessitam de arrependimento.”
Atos         17:30 - “Mas Deus (...) anuncia agora a todos os homens e em todo lugar que se arrependam.”
Romanos  2:11 - “Porque para com Deus não há acepção de pessoas.”
10:13 - “Porque todo aquele que invoca o nome do Senhor, será salvo.
11:32 - “Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para usar de misericórdia para com todos.”
Efésios     2:4 - “Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo muito amor com que nos amou...”
1ª Tim.     2: 4 - “Deus quer que todos os mens se salvem e venham conhecimento da verdade.”4:10 -             “Porque temos posto a nossa esperança no Deus vivo, salva do de todos os homens.”
Tito          2:11 - “Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo a salvação a todos os homens.”
2ª Pedro   3: 9 - “Ele (o Senhor) é longânimo pa r convosco, não querendo que nenhum se perca, mas que to do cheguem ao arrependimento.”
1ª João     4:16 - “Deus é amor; e quem está em amor, está em Deus e Deus nele.”
E para concluir, perguntamos: Acaso a parábola do “credor incompassivo” (Mat. 18:34) não depõe contra a eternidade das penas? “O seu Senhor o entregou aos atormentadores, até que pagasse tudo quanto devia”, limitando, pois, a punição ao tempo suficiente para o ressarcimento do dano.
Vários dos chamados “Pais da Igreja” não admitiam a idéia das penas eternas. “Parecia-lhes”, afirma Voltaire, “absurdo queimar durante a eternidade um pobre homem por haver furtado uma cabra.” Vejamos o que disseram alguns deles:
São Jerônimo, tradutor da “Vulgata Latina”:
“Muitos sustentam que os tormentos terão um fim, mas no momento isso não deve ser dito àqueles para os quais o temor é útil, a fim de que, pelo terror dos suplícios, cessem de pecar.” (“Obras de S. Jerônimo”, Ed. Bened. III, col. 514). Clemente de Alexandria:
“O Cristo Salvador opera finalmente a salvação de todos, e não apenas a de alguns privilegiados. O soberano Mestre tudo dispôs, quer em seu conjunto, quer em seus detalhes, para que fosse atingido esse fim definitivo.” (Cit. por MÁRIO CAVALCANTI DE MELLO, em “Como os Teólogos Refutam”, pg. 230).
São Gregório de Nicéia:
“Quando Deus faz sofrer o pecador, não é por espírito de ódio ou de vingança; quer conduzir a alma a Ele, que é a fonte de toda felicidade. O fogo da purificação não dura mais que um tempo conveniente e o único fim de Deus é fazer definitivamente participarem todos os homens dos bens que constituem a sua essência.” (lbid. pg. 230).
Na mesma obra o autor MÁRIO C. MELLO cita eminentes figuras dos tempos modernos que se têm insurgido contra a noção das penas eternas. Por exemplo:
“O teólogo calvinista PETIT PIERRE pregou e escreveu que os condenados teriam um dia a sua graça, o seu perdão. Impuseram-lhe a retratação das suas teorias, mas ele recusou e foi deposto pelos seus colegas da igreja de Nuchatel” (pg. 226).
“O célebre escritor italiano Giovanni Papini em seu último livro pretende que Deus, em sua infinita bondade, perdoará um dia ao diabo. Mas logo se levantou a Igreja de Roma, para exigir do ilustre escritor uma retratação. Para a Igreja dita cristã Deus é bom apenas teoricamente, só sabe dar bons conselhos, pois recomenda a. seus filhos, pela boca de Jesus, perdoar as ofensas setenta vezes sete vezes e não nos dá o exemplo perdoando a vermes como nós.” (Pg. 228).
Para concluir, deixamos à meditação dos leitores algumas indagações que, embora repetindo conceitos já anteriormente expendidos, servirão para fixar os pontos que consideramos de maior relevância em nossa argumentação:
1 - Se Deus é infinito em todas as suas perfeições, é também infinitamente justo. Então, por que predestina Ele algumas almas à eterna bem-aventurança e outras à eterna condenação? Onde a infinita Justiça?
2 - Se Ele é infinito em todas as suas perfeições, como onisciente tem conhecimento prévio do destino das almas que vai criando, e como presciente sabe que a maior parte delas será condenada à perdição eterna. Por que, mesmo assim, Ele continua criando? Onde a infinita Bondade?
3 - Se Ele é infinito em todas as suas perfeições, é também onipresente. Logo, tanto está no céu, contemplando a felicidade dos eleitos, como no inferno, contemplando o sofrimento dos condenados. E como pode ficar insensível a esse sofrimento por toda a eternidade? Onde a infinita misericórdia?
4 - Se um pecador pode se arrepender dos seus erros durante a vida terrena, por que não poderá fazê-lo após a morte? Não vemos nenhuma razão lógica para que não o possa. Então, por que Deüs, que mandou que perdoemos indefinidamente aos que nos ofendem, e que é tão compassivo para com os que ainda se encontram no plano físico, é tão inflexível com os que já deixaram a Terra? Será a justiça humana mais eqüânime do que a justiça divina?
5 - Como explicar a condenação da Humanidade inteira pelo erro de um só homem, se Deus disse por Ezequiel: “O filho não pagará pela maldade do pai, nem o pai pela maldade do filho; a alma que pecar, éssa morrerá”? (Ezeq. 18:20). E como pode o sangue de um justo apagar os pecados de todo o gênero humano?
6 - Que adianta ter fé, se a fé independe da vontade do homem, e não resulta das obras, por ser “um dom de Deus”, e se nem sequer é necessária, uma vez que a salvação é privilégio exclusivo de alguns “eleitos”?
7 - Se as almas salvas na beatitude do céu conservam a lembrança dos que foram seus parentes e amigos na existência terrena, como poderão ter felicidade plena sabendo que entes queridos estão sofrendo tormentos sem fim no inferno? Como pode uma mãe carinhosa, que se sacrificou por um filho rebelde, desfrutar a bem-aventurança eterna, sabendo que um filho estremecido se consome em sofrimentos por toda a eternidade?

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