A INFALIBILIDADE DA BÍBLIA - I

A Bíblia para os protestantes é a única regra de fé e prática, ela é a “palavra de Deus”, cada um dos seus textos foi divinamente inspirado e dela nada pode ser retirado, nem a ela acrescido. Vale transcrever aqui o judicioso comentário do escritor RUBEM ALVES:

“Parte-se de um “a priori” dogmático: A Bíblia foi escrita por inspiração de Deus. Mas, mais do que isto. Não basta dizer “foi”, porque então entraríamos no campo das mediações históricas. Como garantir que o texto não foi corrompido? E com isto a autoridade se dissolve pela dúvida.

O texto foi preservado puro em todos os séculos, de sorte que o texto que temos hoje diante de nós contém, na sua totalidade, as próprias palavras de Deus. A Bíblia é, assim, a voz de Deus”. (“Protestantismo e Repressão”, ed. Ática, pg. 98).

Nós não temos da Bíblia a mesma noção que os nossos irmãos evangélicos. Respeitamo-la como um repositório de ensinamentos divinamente inspirados e, sobretudo, como acervo documentário da história do povo hebreu. Duas mensagens importantes nela se inserem, visando a impulsionar os homens pela senda do progresso: Uma no Antigo Testamento, consistente no código de moral ministrado por Moisés com as “Tábuas da Lei”. Outra no Novo Testamento, dada por Jesus, com a noção da imortalidade da alma e das recompensas e punições após a morte, segundo as obras, boas ou más, do ser humano em sua existência terrena.

Essas mensagens são consideradas “revelações” e o são, com efeito, no sentido de constituírem ensinamentos novos para o povo a que eram dirigidas; mas, se compulsarmos a História, veremos que não foram ensinos dados em primeira mão, pois outros povos mais antigos, já os haviam recebido. Assim é que os “Dez Mandamentos” foram adaptados dos Livros Védicos, muito anteriores à Bíblia, nos quais se achavam classificados como “pecados do corpo” (bater, matar, roubar, violar mulheres), “pecados da palavra” (ser falso, mentir, injuriar) e “pecados da vontade” (desejar o mal, cobiçar o bem alheio, não ter dó dos outros). (THEODORE ROBINSON, em “Introduction de I”Histoire des Religions”, cit. por MÁRIO CAVALCANTI DE MELO em “Da Bíblia aos Nossos Dias”, ed. 1972, pg. 207). A noção da imortalidade da alma já existia em diversas civilizações anteriores à israelita.

Moisés certamente foi um homem de grande cultura para a sua época, versado nos segredos da ciência egípcia, por ter sido criado e educado pela família real (Atos 7:22). Isto não invalida o ensino dado ao povo hebreu, nem lhe tira o caráter de “revelação”, apenas sugere moderação aos que pretendem ser a Bíblia a única revelação ministrada por Deus aos homens.

Da mesma forma, a lei de amor pregada por Jesus já havia sido objeto de pregação pelo filósofo hindu Kristna e era crença comun entre os povos da antiguidade oriental. Mas as revelações daquele egrégio filósofo foram abafadas pelo Brahmanismo, exatamente como as de Jesus vieram a ser abafadas pelos que se proclamam seus seguidores.

O ponto que desejamos salientar é que, se a Bíblia trouxe revelações divinas ao homem, outras revelações têm sido ministradas por Deus a outros povos. Vários livros religiosos da antiguidade, cada um a seu tempo e atendendo às circunstâncias da sua época, contribuíram para a elevação moral dos povos. A própria Ciência pode ser considerada um instrumento de revelações, sendo os grandes inventores missionários inspirados no sentido de incentivarem o progresso intelectual. E o que são os grandes artistas, senão mensageiros incumbidos do aprimoramento da sensibilidade do espírito humano?

Deus é o Criador de todos os homens, e sendo um Pai Amoroso qual o retrata Jesus, não iria privilegiar um pequeno grupo de bárbaro, relegado oa abandono todo o resto da humanidade por Ele criada. Os hebreus se consideraram “o povo eleito de Deus”, e os irmaos evangelicos acreditam piamente nessa história, por haver inúmeras referêcias a isso na Escritura... E como não haveria, se os escritores da Bíblia foram todos judeus?

É interessante observar que todo o Velho Testamento retrata uma evidente preparação para o advento do Messias. Mas quando enfim desce à Terra  aquele que, segundo os nossos irmãos, é a encarnação do próprio Deus, os  israelitas o rejeitam e o crucificam... E dois mil anos depois, quando a figura do Cristo se projeta na História como o maior de todos os profetas enviados por Deus à humanidade, aquele que veio traçar novos rumos à grande civilização ocidental que se intitula “cristã”, nem assim o “povo eleito” reconhece ou se penitencia do mais clamoroso dos seus erros, continuando apegado à velha concepção farisaica, alheio à pessoa do Nazareno e não mais esperando um Messias personalizado, mas atribuindo à própria comunidade a tarefa messiânica, de conduzir a humanidade aos pés de Jeová, na plenitude dos tempos.

Sendo um povo de grande inteligência e sagacidade, é natural que os israelitas dos tempos hodiernos usassem seu inegável prestígio bíblico junto às opulentas comunidades cristãs, principalmente as protestantes, para desencadear o movimento sionista, que teve por desfecho a “doação” que lhes fizeram as Nações Unidas, em 1948, de vastos territórios mantidos sob protetorado, mas cujos possuidores, legítimos ou não, eram os povos palestinos.

Parece-nos questionável a pretensão a territórios cuja posse fora perdida há mais de três mil anos, além de terem sido adquiridos por direito de conquista, mediante o arrasamento das cidades e a eliminação de praticamente todos os habitantes. Mas o que a Bíblia deixa bem claro é que todas aquelas impiedosas conquistas foram efetuadas por ordem direta e sob imediata proteção do próprio “Deus de Israel”. Leiam-se as seguintes eloquentes passágens:

Lev. 20:26 - “E ser-me-eis santos, porque eu, o Senhor, sou santo, e vos separei dos povos para serdes meus.”

Deut. 7: 2 - “Quando o teu Deus te tiver dado gentes mais poderosas do que tu totalmente as destruirás, não farás acordo com elas e nem terás piedade delas.”

7:6 - “Porque povo santo és ao Senhor teu Deus, que te escolheu para que fosses o seu povo próprio, de todos os povos que existem sobre a terra.”

Não se veja em nossas palavras nenhum laivo de anti-semitismo; o que apenas fazemos é expor fatos, para ilustrar duas importantes conclusões: A primeira é que, para insuflar um povo bárbaro, de índole indomável, os seus próceres tinham de incutir-lhe na mente precisamente isto: — que eram “o povo santo de Deus”, portanto bem superiores aos povos idólatras cujas terras deviam conquistar, e que era o próprio Jeová quem ordenava o arrasamento das cidades e o extermínio total dos seus habitantes.

A segunda conclusão é que o grande apóstolo São Paulo, que recebeu de Jesus a missão de levar a mensagem do Evangelho aos gentios, trouxe, como resquício da sua condição de judeu e fariseu, o mesmo sentimento de privilégio, através da insólita doutrina da “predestinação”: os “salvos” foram eleitos desde a eternidade para a salvação (Efésios 1:4), todos os demais são “ímpios”, estão condenados à perdição eterna.

Os astrônomos calculam que, só em nossa galáxia, existem mais de um bilhão de mundos, inúmeros deles provavelmente em condições semelhantes às do nosso e consequientemente com boas probabilidades de serem habitados. O nosso Sistema Solar inteiro não passa de um ponto insignificante perdido na vastidão do imenso cosmo. E o habitante deste minúsculo planeta, moralmente tão atrasado que quase tudo o que faz é para prejudicar o próximo, impa de arrogância para dizer-se o centro do Universo e de vaidade para se proclamar o expoente máximo da Criação! Ora, com o extraordinário avanço da Ciência nestes últimos tempos, já é tempo de pormos um paradeiro em tão pretensiosas divagações pois é evidente que o Supremo Criador  não teria porque escolher tão desprezível “grão de poeira” para nele instalar uma humanidade eleita; e nem dela selecionar uma horda de bárbaros como seu “povo santo” ... Nem tampouco predestinar uns tantos privilegiados para a salvação eterna, condenando todos os demais a sofrimentos intermináveis...

Jesus pregou a humildade (Marcos 9:35) e ensinou que todos os homens são irmãos (Mat. 5:45 e 23:8). Ora, a convicção cristalizada no inconsciente coletivo em milênios de auto-doutrinação, de ser uma nação privilegiada pelo Todo Poderoso como “povo eleito” não pode gerar sentimentos de humildade, só de arrogância e orgulho, justificando todos os excessos. De igual modo a idéia de uma predestinação oriunda da concepção judaica-cristã perfilhada pelo apóstolo S. Paulo, não pode induzir na mente de ninguém o ideal de solidariedade humana que o nosso Mestre pregou, e sim sentimentos de egoísmo e orgulho, talvez até um certo desprezo pelos considerados “ímpios”. E o que admira é que — estando já escolhidos de antemão aqueles que deverão ser salvos — ainda se dêem ao trabalho de pregar o Evangelho aos incrédulos.

Mas falávamos da Bíblia e da sua infalibilidade. Voltemos a este assunto. Quem examinar com isenção o texto bíblico, observará que aquele Jeová do Antigo Testamento nada tem de comum com o Deus apresentado por Jesus no Novo. E não estamos incorrendo em nenhuma impiedade, sabemos que o nosso Pai Celestial é o mesmo de todos os tempos — sempre misericordioso para com todos os homens. Sabemos que por inspiração Sua foram outorgados os Dez Mandamentos, e que de vez em quando ministrava mensagens de alto conteúdo moral, como vemos em Lev. 19:1,15,18 e 34; Deut. 6:8, 8:6, 15:11, 16:19, etc. Mas essas e várias outras passagens eram como fugazes lampejos que a Divina Misericórdia lançava à consciência do povo como sementes de verdades que deveriam germinar em tempo próprio.

Tudo faz crer que o protetor imediato da nação judaica era uma Entidade mais ou menos identificada com a índole guerreira de raça. Cada homem, cada povo, tem o Guia Espiritual que merece, é dizer, compatível com o seu grau de evolução moral. Podia ser, talvez, um dos antepassados, com autoridade para impor seu domínio sobre os homens. Tais entidades por atrasadas que sejam, nâo ficam ao desamparo da Espiritualidade Superior, mas é claro que esta não pode impor ensinamentos que os assistidos não estejam ainda em condições de assimilar. A evolução tem que vir naturalmente, sempre respeitando o livre-arbítrio de cada ser.

O mesmo ocorre ainda hoje, com os “pretos-velhos” e “orixás” que orientam os cultos africanos. Quando se dedicam ao bem, trabalhando em favor dos que sofrem, recebem assistência e orientação de Espíritos elevados. Se preferem a prática do mal, tornam-se vítimas de entidades malévolas e ficam entregues à própria sorte até que, caindo em si, percebam a voz da consciência e, arrependidos, se voltem para Deus.

O exame do Velho Testamento nos leva a duas alternativas: Ou era o próprio legislador quem, com o propósito de infundir respeito, atribuía à Divindade todos aqueles rompantes de ferocidade de que o Antigo Testamento está repleto, ou Deus se fazia representar ante o povo por uma deidade tribal, talvez até mais de uma, como se infere de Gên. 3:22: “Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal.” E a prova de se tratar de Espírito ainda um tanto materializado é que habitava no tabernáculo (2.8 Sam. 7:6), ou “de tenda em tenda” (1.8 Crôn. 17:5) e “se comprazia com o cheiro dos animais imolados em holocausto” (Números 29:36). Para os gnósticos do II Século, segundo o teólogo WALKER,

“O Deus do Antigo Testamento, criador do mundo visível, não pode ser o Deus Supremo revelado por Cristo, mas sim um demiurgo inferior.” (“História da Igreja Cristã”, 2ª edição, pg. 80).

Do que não resta dúvida é que o Jeová do Pentateuco foi forjado pelos homens à imagem e semelhança destes, com todos os seus defeitos e idiossincrasias. Senão, vejamos: concluida a criação, foi examinar se estava tudo perfeito (Gen. 1:31), como se o supremo criador podesse fazer alguma coisa imperfeita. No entanto, logo se arrependeu, quando viu que a maldade se multiplicara na Terra (Gên. 6:6), como se a presciência e a onisciência não fossem qualidades inerentes a Deus. Aliás, em matéria de arrependimento, Ele nada ficava a dever a qualquer mortal: Arrependeu-se da Criação (Gên. 6:6), bem como do mal que prometera fazer ao povo (Exodo 32:14), arrependeu-se de haver feito rei a Saul (1. Sam. 15: 11 e 35), arrependeu-se por haver dizimado com peste 70 mil do seu povo (2ª Sam. 24:16). Também se arrependeu em Amós 7:3, bem como do mal que prometera fazer a Ninive (Jonas 3:10). Na verdade, apesar de “não ser homem para que minta, nem filho do homem para que se arrependa” (Num. 23:19 e 1.8 Sam. 15:29), Jeova se arrependeu tantas vezes que chegou a se  declarar “cansado de se arrepender” como se lê em Jer. 15:6. Ora sendo Deus a infinita perféição,  é claro que não poderia jamais se arrepender de nada que houvesse feito. Então, como é que querem que tudo quanto se encontra na bíblia tenha sido escrito diretamente por Deus?

Mas ainda há mais. O Deus que amamos e adoramos não pode estar sujeito às paixões humanas. Não se concebe um Deus de infinita perfeição tomado de rancor, pronto a descarregar sobre suas criaturas a sua tremenda ira. E no entanto, embora Ele se diga “misericordioso e piedoso, tardio em se irar e grande em beneficência e verdade” (Ex. 34:6), contam-se para mais de 60 acessos de cólera entre os livros Exodo e 2ª Reis. O Jeová do Velho Testamento, que deu ao seu povo eleito o mandamento “Não matarás”, mandava exterminar os inimigos (e até os amigos...) com incrível ferocidade. Assim, a despeito de que “Deus é a verdade e nele não há injustiça, justo e reto é” (Deut. 32:4), apesar de ser um Deus que “faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro” (Deuter. 10:18), vejamos como se exercitava na prática esse amor:

“Quando chegares a uma cidade a combatê-la, apregoar-lhe-ás a paz; se não fizer paz, a todo varão que nela houver passarás ao fio da espada, salvo as mulheres, as crianças e os animais.” (Deut. 20: 10, 13 e 14). Mas isso valia para as cidades distantes. Para as próximas, “nenhuma coisa que tem fôlego deixarás com vida.” (Deut. 20:16).

e com relação ao seu próprio povo:

“Cada um tome a sua espada e mate cada um a seu irmão, cada um a seu amigo, cada um a seu vizinho.” (Ex. 32:27) “E mataram uns 3 mil dos israelitas que haviam adorado o bezerro de ouro.” Mas Moisés não matou o seu irmão Arão, que fora o fabricante do ídolo, (Ex. 32:28 e 35).

“Se teu irmão, teu filho, tua mulher ou teu amigo te convidar para servir outros deuses, certamente o matarás.” (Deut. 13:6/9).

“Se o povo de uma cidade incitar os moradores a servir outros deuses, destruirás ao fio da espada tudo quanto nela houver, até os animais.” (Deut.13:12/15).

Jeová disse ao povo: “Perfeito serás como o Senhor teu Deus” (Deuter. 18:13). Eis como o povo eleito procurava imitar essa “perfeição”: Moisés, que “era o mais manso de todos os homens que havia sobre a terra” (Num. 12:3), desce do Sinal com as “Tábuas da Lei”, onde constava o mandamento “não matarás” e logo, para passar da teoria à prática, manda matar 3 mil dos seus compatriotas e ainda por cima pede a bênção de Deus para os assassinos (Ex. 32:28/9). Josué conquistou todas as cidades da prometida “Canaã” “destruindo totalmente a toda alma que nelas havia”, (Jos. 10:35), “destruindo tudo o que tinha fôlego, como ordenara o Senhor Deus” (Jos. 10:40), porque “O Senhor pelejava por Israel” (Jos. 10:42), o que afinal não é de admirar, uma vez que “Jeová é homem de guerra” (Ex. 15:3). Das muitas cidades conquistadas, “nada restou que tivesse fôlego” (Jos. 11:14) “porque do Senhor vinha que os seus corações se endurecessem para saírem ao encontro de Israel na guerra, para destruí-los totalmente, para se não ter piedade deles, mas para os destruir a todos, como o Senhor tinha ordenado a Moisés” (Jos. 11:20). “Como ordenara Jeová a Moisés, assim Moisés ordenou a Josué e assim Josué o fez” (Jos. 11:15). “Josué os destruiu totalmente, tomou toda a terra e a deu em herança aos filhos de Israel.” (Jos. 11:21 e 23). E de estranhar que os israelitas estejam agora tentando recuperar essa “herança”?

Jefté, juiz em Israel, oferece ao Senhor em holocausto a sua própria filha (Juízes 11:31) e em seguida mata 42 mil efraimitas (também judeus) (Juízes 12:6). Os israelitas matam 25 mil da tribo de Benjamim (Juízes 20:35), passando ao fio da espada até os animais (Juízes 20:48) e depois dizimam a tribo “Gilead”, poupando apenas 400 virgens para os que haviam sobrado dos benjamitas (Juízes 21:12 e 14). Samuel era vidente de Deus (1.8 Sam. 9:19), mas mandou que o rei destruísse totalmente os amalequitas, “matando desde o homem até a mulher, desde os meninos até os de mama, desde os bois até as ovelhas e desde os camelos até os jumentos” (1 Sam. 15:3). Mas Saul poupou os animais e por isso foi castigado (1 Sam. 15:26), enquanto Samuel “despedaçou o rei amalequita diante do Senhor” (1 Sam. 15:33). Os amalequitas, pagãos, eram mais humanos, porquanto tomaram a cidade de Davi “e a ninguém mataram, só levaram cativos” (1 Sam. .30:2), mas Davi “os perseguiu e matou a todos os amalequitas, porque essa fora a ordem do Senhor” (1 Sam. 15:3), “só tendo escapado 400 mancebos que fugiram” (1 Sam. 30:17).

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